Velhas são as vinhas Menu

Abel Dias Nuno

Agricultor.

Entrevista Nuno Miguel Borges
Fotografia Sofia Pratas Morais

Nuno Miguel Borges:

Trabalha muito com vinhas velhas?

Abel Dias Nuno:

Ainda trabalho com algumas, não são muitas, mas ainda temos vinhas velhas.

Nuno Miguel Borges:

Vinhas com mais de 80 anos?

Abel Dias Nunes:

Temos vinhas com mais de 100 anos.

Nuno Miguel Borges:

Porque é que estas vinhas são importantes?

Abel Dias Nunes:

Porque dão vinhos de certa qualidade. As vinhas velhas não produzem tanto como as novas, mas a qualidade do vinho é muito superior, não tem comparação.

Nuno Miguel Borges:

Em que é que o vinho é superior?

Abel Dias Nunes:

O vinho tem outra qualidade, dá mais grau, e há outras coisas em que são muito superiores às novas... As vinhas velhas só têm um contra: a mão-de-obra.

Nuno Miguel Borges:

Exigem muito trabalho?

Abel Dias Nunes:

Exigem mais trabalho do que as novas, não tem comparação nenhuma.

Nuno Miguel Borges:

Muito mais?

Abel Dias Nunes:

Muito mais. Porque nas vinhas velhas ainda se trabalha como antigamente, ainda tem de lá ir a mão do homem, ainda é preciso trabalhar com a enxada e outras coisas do género. Nas novas, vão os tractores e as máquinas, e resolvem os problemas com mais facilidade.

Nuno Miguel Borges:

Ao longo do ano, as vinhas velhas requerem muita atenção e cuidados?

Abel Dias Nunes:

Sim. Para serem bem tratadas, são precisos muitos cuidados. Aplicar o sulfato é difícil nas vinhas velhas, já nem todas as pessoas o querem aplicar. No ano passado, o meu filho andou a aplicar o sulfato porque o pessoal não queria, não queriam andar com os atomizadores às costas.

Nuno Miguel Borges:

Já não querem?

Abel Dias Nunes:

Já não querem, e não haja dúvida de que aquilo é difícil, porque eu também lá andei – ainda há poucos anos apliquei sulfato com os atomizadores, e sei o que aquilo custa. É a razão porque as velhas vão desaparecendo, porque é mais fácil aplicar nas vinhas novas, e, então, procura-se o mais fácil.

Nuno Miguel Borges:

Que mais trabalhos é que elas precisam durante o ano?

Abel Dias Nunes:

Durante o ano é a mão de obra  para aplicar os herbicidas: é difícil e em geral dá muito trabalho. O herbicida é talvez das coisas que presentemente mais custam nas vinhas velhas. Depois, dá muito trabalho levantar as parras. As velhas têm de ser à mão com vime; as novas, não, é com máquina e cordão.

Nuno Miguel Borges:

Onde é que encontra o vime?

Abel Dias Nunes:

Está normalmente encostado a uma vala. Um dos trabalhos que faço é limpar o vime.

Nuno Miguel Borges:

Como é prepara o vime para utilizar nas vinhas?

Abel Dias Nunes:

Apanho algum antes da empa. Há um período em que não dá para apanhar, porque parte. A verga, se deixarmos secar, parte, portanto tem de ser naquele período em que está tenra, pois verga melhor. Mas nem todas as pessoas são capazes de empar com a verga.

Nuno Miguel Borges:

Porquê?

Abel Dias Nunes:

Porque a verga tem de ser torcida, tem de se dar um jeito, para fazer força na vide e não se desatar. É um nó que se dá. Na verga, limpam-se os ramos e fazem-se molhinhos para depois trazer à cinta com um cinto; e conforme vamos precisando, puxamos a verga. Nem todas as pessoas são capazes, é preciso ter experiência. Eu ainda andei muitos anos com o meu pai e ele tinha o cuidado de me dizer como era.

Nuno Miguel Borges:

Começou a trabalhar com que idade nas vinhas?

Abel Dias Nunes:

Com 13, 14 anos já andava a trabalhar com o meu pai.

Nuno Miguel Borges:

E as vinhas eram todas como são agora as parcelas de vinhas velhas?

Abel Dias Nunes:

Nessa altura, era tudo vinhas velhas. Quando eu comecei com o meu pai, era tudo vinhas velhas, nenhuma era nova. Alguma ia envelhecendo de tal maneira que já não produzia, e lá se plantava, mas não era para as máquinas trabalharem, era para trabalhar à mão. 

Nuno Miguel Borges:

Que fazia com 13 anos?

Abel Dias Nunes:

Fazia tudo. Ainda tenho a recordação de a minha mãe  ―  eu era filho único, o  filhinho dela ― quando eu ia mais o meu pai para as vinhas, dizer: «Ah, dás cabo do garoto.» Eu andava com o pulverizador às costas, pois naquele tempo não havia atomizadores, era pulverizador dorsal, de puxar, o que custa muito mais, é um esforço terrível, e a minha mãe dizia isso.

Nuno Miguel Borges:

Com 14 anos?

Abel Dias Nunes:

Sim, eu pedia ao meu pai para fazer porque gostava. Eu via-o fazer e dizia «Pai deixa-me pulverizar», e o meu pai aceitava, porque gostava de que eu soubesse fazer. Para a minha mãe é que era mais difícil. Eu não andava o dia todo, andava só um bocado... E foi assim que aprendi, a andar mais ele, dava-me sempre atenção, explicava-me como é que se fazia. O meu pai era um agricultor, como se costuma dizer, de luxo, porque gostava de fazer as coisas bem feitas, tudo o que ele fazia na agricultura era bem feito. Ele até fazia um cordão para a carreira de videiras ficar direitinha ― punha um cordão esticadinho, tudo direitinho. A minha mãe até dizia: «Mas porque é que andas tu com isso?» O meu pai era muito perfeito na agricultura.

Nuno Miguel Borges:

As pessoas naquela altura tinham uma ligação diferente com a vinha. Eram mais próximas da vinha do que são hoje.

Abel Dias Nunes:

Pois eram, eram muito mais. No tempo em que comecei, as pessoas viviam mais a vinha.

Nuno Miguel Borges:

Quase que conheciam as plantas todas.

Abel Dias Nunes:

Todas. Como eu ia a dizer, o meu pai era muito perfeito nas coisas dele, tanto na vinha como fora da vinha, era aplicado e gostava de fazer bem feito. E era por isso que eu gostava de andar com ele, para aprender.

Nuno Miguel Borges:

Que mais fazia na vinha nessa altura?

Abel Dias Nunes:

Quando comecei, com 13 anos, ia com o meu pai podar e empar, mas não podava... trazia a tesoura, mas não podava, o meu pai dizia que tinha de me ensinar. O meu pai foi a razão porque que dei seguimento à agricultura, porque eu gostava de o ver trabalhar. Ele fazia as coisas como devia ser e eu gostava.

Nuno Miguel Borges:

Fazia enxertia?

Abel Dias Nunes:

Enxertia não, o meu pai fazia, mas eu não, nunca fui capaz, nunca me dediquei bem a fazer enxertia. O irmão do meu pai é que enxertava, até fazíamos uma troca: o meu pai ia para ele um dia ou dois fazer qualquer serviço e ele vinha enxertar.

Nuno Miguel Borges:

É difícil?

Abel Dias Nunes:

É fácil, é uma questão de hábito, de continuação de fazer. É bicar o garfo com a navalha... e tem de ser aperfeiçoado para não haver folgas e poder pegar bem.

Nuno Miguel Borges:

Era sempre com enxertia?

Abel Dias Nunes:

Sim.

Nuno Miguel Borges:

As varas eram colhidas na mesma vinha?

Abel Dias Nunes:

Algumas, conforme. Nós procurávamos as melhores videiras. Agora, até o meu filho diz: «Pai, depois da vindima, depois do cair da folha, conheces as vides para se poder tirarem varas para enxertar?» Sim, conheço a qualidade das videiras, todas. Só olhando para a videira já sei se ela é Maria Gomes, Bical ou Cercial. O meu pai também sabia as qualidades todas das videiras. O Mário Sérgio vai na vinha comigo, e ele já tem um toque, e diz: «Pai, que qualidade é esta?» Eu conheço as videiras depois do cair da folha, o que é difícil, porque a folha ensina-nos com mais perfeição, mas conheço-as bem precisamente por causa disso. A enxertia é mais difícil hoje porque também não há muitas pessoas que enxertem, hoje não se enxerta tanto. Antigamente, qualquer pessoa enxertava, hoje não é fácil encontrar um enxertador.

Nuno Miguel Borges:

Mas iam buscar as varas à vinha ou...?

Abel Dias Nunes:

A gente escolhia as vides que entendia que eram as melhores, de boa qualidade, que produziam bem, nas nossas vinhas.

Nuno Miguel Borges:

No terreno, misturavam as castas?

Abel Dias Nunes:

Hoje, estão separadas. Antigamente, as videiras era uma Maria Gomes misturada com uma Bical, uma Cerceal, tudo misturado no mesmo terreno. Hoje, escolhe-se a qualidade no talhão: num, Maria Gomes; noutro Cerceal; noutro Bical. É diferente.

Nuno Miguel Borges:

Que mais faziam na vinha na altura e que já não fazem hoje?

Abel Dias Nunes:

O que nós fazíamos muito na vinha ― tinha de ser, não havia outro remédio ― era cavar as vinhas à enxada. Isso era o mais difícil que se pode fazer nas vinhas velhas. É o tratar do terreno.

Nuno Miguel Borges:

Porquê? Era duro?

Abel Dias Nunes:

Era duro. Já viu?, com uma enxada na mão de manhã à noite, um dia inteiro sem cessar. Era por isso que a minha mãe dizia que o meu pai me matava.

Nuno Miguel Borges:

Cavavam à volta da cepa?

Abel Dias Nunes:

Fazia-se uma descava, e depois é que se cavava a vinha.

Nuno Miguel Borges:

Que era cavar a vinha?

Abel Dias Nunes:

Era cavar o terreno todo.

Nuno Miguel Borges:

Tinham animais para ajudar?

Abel Dias Nunes:

Não. Era muito difícil. Eu às vezes dizia: «isto é escravidão», e era. Cavei muito mais o meu pai, e não só. Os trabalhadores que cá trabalhavam em casa trabalhavam comigo e gostavam. Porquê? Porque eu andava nas vinhas com eles. Eu cavava e rapava as ervas, e eles diziam: «Ó chefe, você consegue esse ritmo sempre.» Consigo, habituei-me e estou habituado. Aquilo era tudo cavado à enxada, era doloroso. Cavar as vinhas era doloroso. Hoje, é um mar de rosas, temos o tractor.

Nuno Miguel Borges:

Era uma vez por ano?

Abel Dias Nunes:

Era uma vez por ano e tinha um período de se fazer, Março e Abril, cavas de Abril e rendas de Maio. Rendas de Maio era depois de a vinha estar cavada; quando vinham os orvalhinhos, íamos lá com a enxada, e chamava-se aquilo de rastilhar.                                                                                                 Rastilhávamos a terra para ela ficar direitinha, fofa. Era rastilhar e era logo no período da cava, dessa dita cava. A cava era muito pior do que o arrendar, que era só tostar por cima; o cavar não, a enxada tinha de se enterrar. Se falar com um jovem, ele não acredita como é que o corpo humano aguentava tanto esforço. É uma coisa enorme, mas tinha de ser feito, porque se não, em fins de Maio, Junho, com o calor, a terra secava e começava a abrir gretas, e nessa altura a vinha sofria. Tinha de se cavar e tinha de se rastilhar. O meu pai, quando comprámos o primeiro tractor e comecei a tratá-las com o tractor, dizia que eu já conseguia ser o mais malandro cá na casa. Não tinha comparação.

Nuno Miguel Borges:

Terminando as podas.

Abel Dias Nunes:

A altura ideal da poda é no fim de Outubro, mais Novembro, Dezembro e Janeiro. Depois, Fevereiro e Março ainda se faz alguma poda, mas já não é aconselhável.

Nuno Miguel Borges:

A poda naquela altura não era complicada.

Abel Dias Nunes:

Não era complicada, mas era diferente e custava mais do que agora. Antigamente, era feita com as tesouras manuais, agora é feita com a tesoura eléctrica. O meu filho na altura da poda ficava com a mão inchada do esforço da tesoura. Era o dia todo, a mão inflamava com o esforço de cortar as sacadas das videiras com a tesoura manual. Um dia, o meu Mário Sérgio disse: «Vou-te comprar uma tesoura.» Elas não eram como são agora, mais aperfeiçoadas. Quando ele me comprou a primeira, eu peguei-lhe e comentei: «Isto não presta para nada», mas estava enganado. Comecei a ver que tinha de ser com ela que tinha de podar e comecei a habituar-me. Hoje, já não consigo podar com as manuais, tem de ser com as eléctricas, porque já não cansam a mão. É uma maravilha.

Nuno Miguel Borges:

Que outras tarefas fazia que se perderam ou se modificaram?

Abel Dias Nunes:

Tinha a poda, a empa, depois a cava da vinha e a descava. Por exemplo, numa videira, fazia um quadrado em volta da cepa e fazia a descava. Depois de ela estar descavada, não podia ficar sempre assim, porque no Verão o calor tomava conta delas, e então, antes de chegar o Verão, chegava-se a tal dita terra ao troço da planta, a essa descava, para o sol não entrar pela videira, porque senão elas, coitadinhas, no Verão e descavadas e a terra por mexer, não iam longe.

Nuno Miguel Borges:

Se não cavasse no Inverno a vinha, não fizesse a descava para ter água e não tapasse a descava quando chega o Verão, se não fizesse estes trabalhos na vinha, o que é que acontecia?

Abel Dias Nunes:

Secavam as cepas.

Nuno Miguel Borges:

Não tinha alternativa a não ser cavar a terra todos os anos?

Abel Dias Nunes:

Todos os anos. Depois, quando veio o herbicida, deixou de se descavar, o grande mal das videiras. Os herbicidas num aspecto são bom, mas noutro são uma coisa tremenda, dão cabo das videiras todas.

Nuno Miguel Borges:

Em que sentido?

Abel Dias Nunes:

Porque o herbicida é utilizado para eliminar a erva. É maravilhoso eliminar a erva, porque a erva, se lhes chega, toma conta das videiras, e com o herbicida deixou de se cavar as vinhas. A descava não deixava criar a erva, mas veio o herbicida e já não tem de se cavar, é só espalhar o herbicida, já não se aplica a tal dita descava.

Nuno Miguel Borges:

O herbicida afecta a planta de que forma?

Abel Dias Nunes:

É prejudicial; é um produto que actua na erva, mas prejudica a vegetação da videira. Se botar por cima das videiras, queima-as, ficam destruídas. Hoje, muitas das vinhas vão-se embora precisamente por causa do herbicida; a vinha hoje dura muito menos anos do que durava há 50 ou 60 anos.

Nuno Miguel Borges:

Eram tratadas de forma diferente.

Abel Dias Nunes:

Exactamente, eram tratadas de forma diferente.

Nuno Miguel Borges:

Era tudo mais natural?

Abel Dias Nunes:

Era mais natural.

Nuno Miguel Borges:

Metiam estrume na vinha?

Abel Dias Nunes:

Estrumava-se muito mais e estrumava-se muito mais com material orgânico do que com os herbicidas. O herbicida é destruidor.

Nuno Miguel Borges:

Mas utilizavam muito o estrume na vinha?

Abel Dias Nunes:

Muito estrume.

Nuno Miguel Borges:

Era outro trabalho que faziam. Tinham animais?

Abel Dias Nunes:

Tínhamos animais, de criação, vacas. Faziam-se montes de estrume nos terrenos para depois se poder aplicar nas vinhas. Gastava-se muito estrume nas vinhas, e pouco adubo. Nesse tempo, punha-se pouco adubo. Aplicava-se mais estrume porque o adubo fazia-as explodir mais. As vinhas antigamente tratavam-se muito bem.

Nuno Miguel Borges:

As uvas eram diferentes ou eram iguais?

Abel Dias Nunes:

As uvas eram totalmente diferentes.

Nuno Miguel Borges:

As uvas hoje são diferentes?

Abel Dias Nunes:

Eram muito melhores as uvas há 30 ou 40 anos do que são hoje.

Nuno Miguel Borges:

Tinham outro sabor?

Abel Dias Nunes:

Não tem comparação.

Nuno Miguel Borges:

Não?

Abel Dias Nunes:

Não, os cachos eram mel. Nós tirávamos uns baguinhos e aquilo era mel. Agora, também são bons, se não fossem bons não podíamos produzir coisa boa.

Nuno Miguel Borges:

Mas eram diferentes?

Abel Dias Nunes:

Eram diferentes. Antigamente, os cachos eram mais asseadinhos, bonitos, compostos.

Nuno Miguel Borges:

Quando chegava a vindima, com este trabalho todo de um ano às costas, devia ser uma enorme alegria, uma recompensa muito grande, apanhar as uvas.

Abel Dias Nunes:

Uma coisa que quero dizer: até a vindima é diferente do que era há 40 anos. Há 40 anos, em geral, eram só mulheres que faziam a vindima, poucos homens andavam de tesoura a cortar uvas. Antigamente, nas vindimas, as mulheres tinham de levar os cestos de verga à cabeça desde casa do patrão até à vinha e, depois, acartar na cabeça da vinha para fora, para as dornas, para os animais, bois e vacas, que estavam perto da vinha à espera.

Nuno Miguel Borges:

Era pesado?

Abel Dias Nunes:

Eu ainda hoje não sei como é que as mulheres aguentavam um dia inteiro a acartar as uvas para as dornas.

Nuno Miguel Borges:

Os cestos eram grandes?

Abel Dias Nunes:

Nós chamávamos os cestos de poceiros. Era um cesto redondo de verga, e cada poceiro, depois de esmagadas as uvas, tinha de média era um almude de vinho (20 litros). Não me esqueço de que cada mulher levava à cabeça 12 cestos vazios, tinham de ser duas pessoas a ajudarem a pôr à cabeça.

Nuno Miguel Borges:

Com todos estes trabalhos e esforços o ano inteiro, quando apanhavam as uvas devia ser uma alegria muito grande.

Abel Dias Nunes:

A vindima era alegre. Sabe, eu ainda gosto dessa tradição, que cá em casa não acaba com duas lérias, porque aqui na Bairrada devemos ser os únicos lavradores que fazem a festa da vindima. A festa da vindima acabou. Nós fazemos a festa da vindima: no último dia de vindima, temos um lanche, e, mais à frente, temos a ceia da vindima, em que as pessoas vêm jantar, o pessoal todo. As pessoas adoram, sempre foi assim. E a sobremesa é papas de abóbora – é abóbora cozida com açúcar e farinha. É uma maravilha.

Nuno Miguel Borges:

Hoje, quando olha para as vinhas velhas, lembra-se desse tempo.

Abel Dias Nunes:

Lembro-me desse tempo, mas não gosto delas.

Nuno Miguel Borges:

Não? Porquê?

Abel Dias Nunes:

Porque dão muito trabalho.

Nuno Miguel Borges:

Ainda se lembra da dureza.

Abel Dias Nunes:

Ainda faz calo. O tempo de tratar as vinhas há 30 anos faz calo, quem trabalhou nelas não esquece com facilidade.

Nuno Miguel Borges:

Ainda tem muitas vinhas velhas?

Abel Dias Nunes:

Temos algumas.

Nuno Miguel Borges:

E porque é que faz sentido ter essas vinhas?

Abel Dias Nunes:

É a qualidade. A vinha velha produz vinho de qualidade. O Mário Sérgio diz «Pai, temos de ir guardando as velhas porque elas dão vinho de qualidade». E dão vinho de qualidade porque as tratamos e vamos andando com elas, caso contrário, não valia a pena.

Nuno Miguel Borges:

Se as uvas eram diferentes antigamente, o vinho era muito diferente?

Abel Dias Nunes:

O vinho tinha outra qualidade. Antigamente, o vinho era bom porque haviam castas boas. Por exemplo, a baga. Muitas pessoas, muitos lavradores, abandonaram as vinhas de baga, mas nós não abandonámos, a baga é o nosso vinho preferido.

Nuno Miguel Borges:

Sempre foi a baga?

Abel Dias Nunes:

Sempre foi a baga. Temos outras castas, mas a maior parte é baga.

Nuno Miguel Borges:

Era muito diferente a baga na altura?

Abel Dias Nunes:

O baga comia-se, pegava-se no cacho e comia-se. Ainda estou a ver o meu avô, o pai do meu pai, outro agricultor que se dedicava por inteiro à agricultura. O meu avô foi o homem mais inteligente que eu conheci a trabalhar comigo, era um homem extraordinário, não sabia ler, mas era um homem com uma cabeça incalculável.

Nuno Miguel Borges:

A trabalhar a vinha?

Abel Dias Nunes:

A trabalhar a vinha, trabalhava com perfeição, algo que o meu pai herdou. É de família, não tenha dúvida de que é de família. Ainda hoje, os trabalhadores que andam comigo dizem: «o nosso patrão gosta das coisas bem feitas», e é verdade. E então, as vinhas velhas produziam a baga, só tínhamos aqui e ali uma videira branca misturada nas bagas, é por isso que há bocadinho disse que as castas eram misturadas, não era como hoje, em que há um talhão para cada uma. O meu avô era o homem do carro das vacas, para trazer as uvas, e quando estava para descarregar ― era tudo descarregado à mão, de forquilha, para o lagar ― tirava da dorna de madeira um cacho de baga e dizia-me sempre «filho, prova uma baga», e eu provava um cacho e era mel. Não percebia nada, era criança, mas sabia o que era doce. O meu avô era muito meu amigo. E sempre conservámos a baga precisamente por isso, por ser de boa qualidade, muito melhor do que qualquer outra variedade. Ainda hoje é um cacho que, se for bem tratado, se o acompanharem desde o princípio, é uma casta maravilhosa. Mas, hoje, os lavradores, parte deles, não se dedicam, não ligam à baga.

Nuno Miguel Borges:

Escolhem outras castas.

Abel Dias Nunes:

As pessoas que têm outra ideia, não querem baga, mas o que é certo é que eles estão totalmente errados. Tanto é que o vinho Pai Abel vai além-fronteiras. Nós só temos as castas que sempre tivemos: cercial, Maria Gomes e bical nos brancos, e baga e um pouco de touriga nacional nos tintos. Sempre foi assim, e era aqui que eu queria chegar: as castas têm preferência. O baga é um vinho que dura anos e é por isso que se deve tratar o baga desde o princípio, como se costuma dizer, desde pequenino, desde a vinha. No início do ano, tem de se tratar o baga muito a preceito, ele é muito delicado, tem que se pôr os produtos, os insecticidas por causa da traça, essas coisas todas, tem de se cuidar dele, mas não deixa de ser uma boa qualidade. 

Nuno Miguel Borges:

As vossas vinhas sempre foram nesta zona?

Abel Dias Nunes:

Sim, nesta zona. Fogueira, Sangalhos, Ancas. Na área de Ancas, devemos ser das pessoas com mais vinhas, porque aquilo é calcário, é barro e pedra, são vinhas de primeira. É uma delícia, é por isso que tem muitos anos.

Nuno Miguel Borges:

Valeu a pena trabalhar a vinha?

Abel Dias Nunes:

Valeu. Graças a Deus, como se diz agora, fizemos muito até agora. Ainda trabalho todos os dias.

Nuno Miguel Borges:

Quais são os trabalhos que faz hoje?

Abel Dias Nunes:

Ando com o tractor, faço tudo com o tractor na vinha. Faço poda, empa. Atrás da adega, temos uma área de 7000 metros, podei-a toda sozinho, com a tesoura eléctrica, aos poucos, ia para lá nas minhas horas livres. Eu, quando trabalho, trabalho. Na vindima, trago as uvas todas com o tractor. As nossas vinhas são muito inclinadas, é preciso muito cuidado para transportar as uvas com o tractor nessas vinhas, porque um tractor vira por qualquer coisinha, mas eu é que tiro as uvas. Já sei que não sou o Abel de há vinte anos, as faculdades vão fugindo, é preciso cuidado, mas este ano fui eu que as trouxe todas. Granjeei as vinhas todas, com os dentes do tractor. Sempre trabalhei muito, com o meu pai, mas também com o meu avô, que era muito meu amigo e que me pedia opinião. Ainda estou a vê-lo nas Bágeiras comigo... eu gostava de lhe mostrar as vinhas. Ele já tinha quase 90 anos e eu levava-o na minha motorizada a ver as vinhas. Um dia, tinha comprado um terreno, as Bágeiras, e perguntei-lhe «Avô, fiz bem ou fiz mal?, gostava da sua opinião.» E ele: «Filho, fez bem», ele tratava-me por você, «porque você ainda é muito jovem, tem muitos anos à sua frente, se Deus quiser, por isso você fez bem em comprar». Levava-o a ver as vinhas e ele adorava. É como o Nuno Miguel disse, é uma tradição, já vem de trás e ainda vai haver mais seguimento.

Nuno Miguel Borges:

O seu avô é o pai do avô Fausto?

Abel Dias Nunes:

Exactamente, chamava-se Alfredo. Era um homem que não sabia ler, só sabia fazer o nome dele, mas se o visse não acreditava, porque ele sabia tudo, ele sabia a história de Portugal daquele tempo, a geografia, os rios, onde nasciam e onde desaguavam, tudo. Só captava pela cabeça dele, era um homem muito inteligente. Não tinha nada, o meu avô não tinha um metro de terreno.

Nuno Miguel Borges:

Não tinha?

Abel Dias Nunes:

Não. O meu avô tudo o que adquiriu foi à custa de trabalho, não herdou terreno nenhum de ninguém. Ele veio da serra, de São João do Monte, Caramulo, para Amoreira da Gândara, que foi onde começou. Ele contava-me, e as lágrimas caíam-me, de quando veio para Amoreira da Gândara. Ele fazia o correio do Caramulo ao Campo de Besteiros a pé, o correio naquele tempo era a pé pelo meio da serra fora. Um dia, aparecem dois lobos no meio da serra, e ele pensou: «é o fim da minha vida», tinha 13 anos e ficou cheio de medo, «é agora que eu morro, comem-me». Ele ia fora de horas, e foi por isso que os lobos apareceram, naquele tempo não havia relógio, era pelo Sol e pelo tocar dos sinos. Ele estava a dormir e o meu bisavô chamou-o: «Alfredo, levanta-te que são horas, já cantou o galo», só que o galo lembrou-se de cantar mais cedo. O meu avô contava que estranhou, «custou-me a levantar, ainda não estava na hora», mas por obediência ao pai levantou-se e meteu-se à serra sozinho com a mala do correio às costas. Quando ia no meio da serra, aparecem os lobos e ele «pronto, é o meu fim», mas continuou até à outra povoação e os lobos começaram a afastar-se. Então, o meu avô ficou com medo de fazer o correio e chegou a casa e disse para o pai que não voltava a fazer o correio, e contou o que tinha acontecido. Como o meu bisavô era mais severo, ele disse «Voltas, voltas», e obrigava-o a ir. Entretanto, o meu avô falou com um senhor que era aqui da Amoreira da Gândara e contou-lhe a história, e ele disse «Queres ir servir para minha casa?» E ele disse que sim. Portanto, foi-se embora para Amoreira da Gândara, com 13 anos, servir. Ficou a ser o chefe da casa, era ele que manobrava aquilo tudo. Trabalhou ali e depois foi aprender a arte de serralheiro, e veio para a Fogueira trabalhar. Como era um homem inteligente, aplicou-se, trabalhou e montou uma oficina aqui na Fogueira; conheceu a minha avó, casou, e começou a comprar terrenos. Ele dizia: «O que eu comprei é para vocês e é o suficiente para vocês viverem e trabalharem sem ser à custa dos outros. O que eu faço é para vocês.» E assim foi, começou a comprar terrenos, e naquele tempo não era fácil haver pessoas com dinheiro, começaram a oferecer-lhe terrenos e ele foi comprando e comprou o suficiente para os filhos poderem trabalhar sem ser para os outros.

Nuno Miguel Borges:

O que faziam às uvas?

Abel Dias Nunes:

Fazia-se o vinho na adega, em casa, e depois vendíamos o vinho a granel, não era engarrafado. O meu avô, ainda não tinha muita idade, quis dar aos filhos os terrenos, só tinha dois, o meu pai e o meu padrinho, com o mesmo nome. Chamou os dois e disse-lhes «está na hora, isto é para vocês», e entregou os terrenos, as vinhas, aos filhos. E como era uma família, fizeram as partilhas sem haver louvados. O meu avô disse: «Ninguém sabe melhor o valor das coisas do que nós. Temos de ser nós a dar o valor». E assim foi, o meu avô sentado à mesa com eles e a dividir os terrenos. É uma família que sempre se entendeu muito bem. 

Nuno Miguel Borges:

As vinhas, antigamente, tinham oliveiras, árvores de fruto?

Abel Dias Nunes:

Sim, tínhamos à volta da vinha. Temos um terreno grande, com 40000 metros, que tinha árvores de fruto que davam para abastecer a freguesia. E havia bocados de pinhal ao pé, havia de tudo um pouco.

Nuno Miguel Borges:

Animais na vinha?

Abel Dias Nunes:

Não.

Nuno Miguel Borges:

Já arrancou vinhas velhas?

Abel Dias Nunes:

Muitas. Em terrenos que não eram os mais indicados para vinha, não davam vinhos de qualidade, não valia a pena lá estarem. Em terreno bom, não. Temos uma vinha em Ancas com mais de 100 anos que era do bisavô da minha mulher. É baga com umas cepas brancas misturadas. É para o vinho Garrafeira.

Nuno Miguel Borges:

Vindimavam as brancas e as tintas ao mesmo tempo?

Abel Dias Nunes:

Ia tudo junto, hoje já não se faz assim. O meu Mário Sérgio separa, corta o branco de uma vez e o tinto de outra. Escolhe no meio das videiras. Naquele tempo, não, era tudo a granel, mas não deixava de ser bom. Era bom porque havia essa mistura de branco e tinto, dava-lhe um aroma. O vinho naquele tempo era muito bom.

Nuno Miguel Borges:

Qual é o vinho de que gosta mais?

Abel Dias Nunes:

O tinto 95 é especial. Gosto muito de tinto, para comer gosto muito de tinto. Gosto muito do Garrafeira. Os nossos vinhos brancos também são muito bons.

Nuno Miguel Borges:

Trabalhando bem a vinha, o vinho tem tudo para sair bem.

Abel Dias Nunes:

Claro, a vinha tem de ser bem trabalhada, desde a raiz ao cimo, tem de ser bem tratada. Eu costumo dizer que os anos a mim já não me perdoam, tenho 85 anos, mas ainda mando, mas não mando, dou a minha opinião quando tenho a certeza de que ela é acertada. No tratamento das nossas vinhas, quando pomos sulfato, a pessoa que anda a polvorizar vê do que ela necessita, se tem míldio, oídio, a pessoa que anda a sulfatar tem a obrigação de analisar, porque depois de lá estar já não há remédio, e tem de se evitar a doença. Eu ando por lá a polvorizar e vejo uma videira que me parece que não está bem e que tem oídio ou ferrujão, que é ficar preta. Vou ver e digo ao meu filho: «Olha que naquela vinha há míldio." «Não, pai.» «Quem te diz sou eu, aquilo que está ali é míldio.» Ele vai para a estação vitivinícola e pergunta à engenheira se há míldio. «Não, este ano não há míldio em lado nenhum, impecável.» E o meu Mário Sérgio disse: «A senhora engenheira está enganada. Há míldio, o meu pai já o viu e tem míldio na vinha.» Ela quis ver a vinha e veio ver, apareceu com duas colegas da estação. «O senhor que é o pai do Mário Sérgio?» «Sou.» «Então, o senhor diz que há míldio nas vinhas?» «Sim.» «O senhor está enganado.» «Enganada está a senhora engenheira. Eu vou mostrar-lhe onde está o míldio. Olhe ali. Esta videira e aquela.» «Tem razão, já tenho de desmentir quem me disse que não havia míldio.» O meu Mário Sérgio mandou logo vir o pessoal e pôr o sulfato. Eu é que polvorizei aquilo tudo e evitei um desastre.

Nuno Miguel Borges:

É preciso andar no meio da vinha!

Abel Dias Nunes:

É preciso andar no meio da vinha; se não andar, não vê. Durante o ano, tem de se analisar. O meu avô dizia a um senhor da Fogueira: "elas têm míldio porque o Senhor não vai lá. O Senhor tem de lá ir uma vez por dia. Só para analisar e ver se ela está ou não afectada, porque se lá não for corre o risco de apanhar míldio ou oídio." Por isso é que eu digo que não mando, mas mando. E mesmo em qualquer coisa que se faça, dou a minha opinião, muitas vezes acertada. Mas também aceito a dos outros, pois não sabemos tudo. Quando começou na agricultura, o meu Mário Sérgio era muito jovem, tinha 23 anos, e disse-me que não queria estudar mais, que queria trabalhar comigo. Eu achei que ele era doido, mas lá acabei por aceitar. E disse: "Agora, és tu que tratas, és tu que trabalhas, a opinião é tua, também é minha, mas é contigo agora", não fiz como muitas pessoas que dizem "quem sabe sou eu". Eu não, dei-lhe carta branca e, graças a Deus, também eu também sabia quem tinha, porque o meu Mário Sérgio ainda muito jovem já gostava da agricultura: semeava batatas mais a mãe, por conta dele, para ele, e depois vendia e o dinheiro era para ele. As galinhas, andava sempre com os ovos num sítio da quinta. E eu deixei.

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