Velhas são as vinhas Menu

Antero Martins

Professor Jubilado no Instituto Superior de Agronomia, na área de Genética e Melhoramento de Plantas.

Entrevista: Nuno Miguel Borges
Fotografia: Beatriz Banha

Nuno Miguel Borges:

Porque é que as vinhas muito antigas são importantes?

Antero Martins:

Bem, do nosso ponto de vista, que trabalhamos com a diversidade intervarietal das castas, é importante porque as vinhas velhas são sede dessa diversidade, ao contrário das vinhas novas, plantadas aproximadamente a partir de meados da década de 1980. As vinhas novas são plantadas com materiais homogéneos, e, portanto, não têm essa diversidade. O que significa que a diversidade está a desaparecer, está sob erosão genética muito forte. E para travarmos esse processo de erosão genética, temos de fazer amostragem da diversidade de cada casta antiga em vinhas velhas, marcar plantas, mais ou menos aleatoriamente nessas vinhas velhas, e conservá-las. Conservar essas plantas para que no futuro disponhamos sempre da diversidade que foi criada até ao presente.

Nuno Miguel Borges:

Porque é importante?

Antero Martins:

É importante porque muda muito os objectivos de quem faz a cultura, de quem consome vinho, as condições climáticas, a pressão dos agentes bióticos, das doenças, etc. E é preciso mudar constantemente o tipo de material vegetal que se cultiva, as castas que se cultivam, e os genótipos dentro de cada casta que se cultiva em cada época. Aquilo que é bom para o ambiente de hoje, para o contexto vitivinícola de hoje, pode não ser bom, e não é seguramente bom, para daqui a 100 anos. Portanto, nós temos de fazer selecções, nas diversas épocas, dentro da casta, para identificar materiais genótipos que são mais consentâneos com o contexto do momento.

Nuno Miguel Borges:

Em Portugal, existe muita biodiversidade nas vinhas antigas?

Antero Martins:

Existe uma diversidade imensa, muito além daquilo que as gentes pensam. A diversidade intervarietal não é coisa que esteja à vista, as pessoas em geral não a vêem, e pensam que uma casta é um conjunto de plantas todas parecidas, todas geneticamente mais ou menos iguais, mas a realidade é completamente diferente. Dentro de uma casta razoavelmente heterogénea, uma casta antiga, o potencial genético de rendimento pode variar do simples para 10 vezes mais. É uma coisa verdadeiramente extraordinária! Pode haver plantas dentro de uma casta com um potencial genético de rendimento de 100 gramas por planta, e outras de dois quilos, três quilos, por planta: são diferenças imensas. E algo semelhante acontece com as características em geral, embora não com uma gama de variação tão grande quanto o rendimento, mas mesmo assim com gamas de variação que têm um significado económico enorme. Por exemplo, o teor de açúcar, o teor de acianas, a acidez, o mosto, etc., que têm gamas de variação que podem chegar a 100%. O teor de açúcar no mosto dentro de uma casta pode variar do simples para o dobro.

Nuno Miguel Borges:

Pode dizer-se que essa diversidade é especifica de certas regiões? Há um padrão em cada região?

Antero Martins:

É tudo diferente. Esta realidade é diferente entre castas. Há castas que são mais heterogéneas e outras menos heterogéneas. Isso tem relação com a idade da casta, embora não seja uma relação directa, pois não depende só da idade, depende de outros factores, embora em larga medida dependa da idade da casta. A diversidade intervarietal surge através de mecanismos naturais de variação, mutações e mecanismos afins, associados ao próprio crescimento das plantas; e então, as castas têm uma história evolutiva diferente umas das outras, umas mais antigas, outras mais modernas, umas mais cultivadas, outras menos cultivadas. E o que nós verificamos hoje é que há castas que têm uma diversidade intervarietal muito grande e outras têm-na mais moderada. Por exemplo, a Negra Mole, do Algarve, a Cerceal, da zona de Bucelas, são das castas que têm maior diversidade, e a gama de variação de rendimento ultrapassa a relação de 1 para 10, chegando a ser próxima de 1 para 20; plantas que produzem poucos gramas e outras que produzem vários quilos por planta. Há outras que variam menos, por exemplo a Jean, do Dão, ou a Touriga Franca, do Douro, e isso resulta em parte de essas castas serem mais modernas, de existirem no país desde há menos tempo, ou de terem sido muito pouco cultivadas no passado, porque como eu disse há pouco a diversidade depende pelo menos destes dois factores ― tempo durante o qual se criou a diversidade e a quantidade de plantas que em cada ano existe numa determinada região, e quanto maior for esse número de plantas maior é também a diversidade criada. E depois, pela mesma razão, a mesma casta pode variar entre regiões: uma casta pode existir numa região há muitos séculos e noutra região há menos tempo, e, portanto, nesta segunda também haverá menos criação de diversidade do que na primeira.

Nuno Miguel Borges:

Pode dizer-se que numa região a diversidade de uma casta é muito semelhante ou numa mesma região pode haver diferenças grandes na mesma casta?

Antero Martins:

Dentro de uma região, existe diversidade, pode é variar de região para região, e varia de casta para casta, e para a mesma casta varia de região para região em que ela é cultivada. Por exemplo, para o Tempranilho, cujo nome em Portugal é Tinta Roriz, Aragonez, foi feito um trabalho experimental para quantificar a diversidade em quatro regiões, duas de Espanha, Rioja e Mancha, região do Vale de Penhas, e duas em Portugal, o Douro e o Alentejo. Ao contrário daquilo que é um pensamento corrente, verificou-se que a casta terá sido originada na Rioja, encontrou-se mais diversidade em Vale de Penhas e depois quantidades de diversidade relativamente próximas entre Rioja, o Douro e o Alentejo, isto é, a casta terá surgido primeiro na região de Vale de Penhas e existirá em Portugal desde há muito tempo, também quando comparada com a região da Rioja. Portanto, associamos a quantidade de diversidade à idade evolutiva, embora não seja uma relação rigorosa, mas é um indicador que tem utilidade.

Nuno Miguel Borges:

Ou seja, se perdermos esta diversidade estamos a apagar o passado da casta.

Antero Martins:

Estamos a apagar o passado, mas, vá lá, a quantificação da diversidade permite-nos fazer a leitura do passado. Há conhecimento empírico, um aparente conhecimento empírico, dos movimentos das castas que por vezes é contradito por este tipo de análise. Por exemplo, a Baga da Bairrada é considerada exactamente da Bairrada, originária da Bairrada, mas com base neste tipo de análise a casta não é originária da Bairrada, mas, sim, do Dão, e terá viajado para a Bairrada há relativamente pouco tempo, há poucos séculos. Algo semelhante se passa com a Maria Gomes, da Bairrada, que é a Fernão Pires, no Ribatejo, e noutras áreas mais para o Sul, e a casta é principalmente associada ao Sul, mas a diversidade é maior na Bairrada, quer dizer, ela terá existido na Bairrada antes do Ribatejo e terá viajado para baixo há poucos séculos.

Nuno Miguel Borges:

Que retrato é que se pode fazer de Portugal a partir destas análises?

Antero Martins:

A viticultura é muito antiga e a diversidade parece-nos muito grande em relação a países estrangeiros intensamente vitícolas. É certo que não temos feito muitos estudos comparativos entre a variabilidade de castas em Portugal e as mesmas castas no estrangeiro, mas temos feito alguns. Por exemplo, já fizemos com o Grenache em Espanha, França e Itália; o Jaen do Dão, que já referi há pouco, já comparámos a sua diversidade entre Portugal e a Galiza; há também o Bastardo, já tendo sido comparado o Bastardo ou o Torssou de França com o de Portugal; a Tinta Caiada, que é a Paraleta em Espanha; e as quantidades de diversidade são grandes em Portugal. Em alguns países estrangeiros, também são grandes, o que acontece é que em nenhum outro país no estrangeiro se fazem análises deste tipo que estou a referir. Portanto, é difícil fazer análises comparativas extensas e profundas entre países, mas existem alguns casos, como os que acabei de dizer. Temos este tipo de conhecimento em relação a meia dúzia de casos, e Portugal revela-se uma região com uma variabilidade comparada muito grande. Veja-se o caso da Tempranilho, uma casta importantíssima no mundo, nós temos aqui em Portugal, no Douro e no Alentejo, uma diversidade muito elevada, da mesma ordem de grandeza da da Rioja.

Nuno Miguel Borges:

É quase tão antiga em Portugal como em Espanha.

Antero Martins:

Com base neste critério, sim. A casta existirá em Portugal desde um passado da mesma ordem de grandeza do da Rioja.

Nuno Miguel Borges:

Qual é a realidade portuguesa actual quanto ao contexto das castas?

Antero Martins:

Quanto à exploração da diversidade, ao reconhecimento e exploração da diversidade intervarietal, é sobretudo através da selecção, que trata de destacar dentro da casta um genótipo ou um conjunto de genótipos que são mais eficientes do ponto de vista actual do que outros. É o aproveitamento mais óbvio que se faz da diversidade intervarietal, e fazemos isso com metodologias que são as mais evoluídas no mundo vitivinícola até ao momento, aliás, são metodologias aprovadas sob a fórmula de resolução da Organização da Vinha e do Vinho. Depois, fazemos uma outra abordagem que também é única, também à escala mundial, que é a conservação. Mas a conservação, digamos, com base teórica e planeada objectivamente, para se conservarem amostras representativas, estatisticamente representativas, da diversidade de cada casta, o que não acontece em geral no estrangeiro, ou não fazem a conservação. Até vários países dos economicamente mais desenvolvidos já perderam a diversidade intervarietal porque não se aperceberam do fenómeno da erosão a tempo. Por exemplo, a Alemanha, a partir do termo da Segunda Guerra Mundial, entrou num processo muito rápido de reconversão das vinhas, substituiu todas as vinhas velhas por vinhas novas sem diversidade. Outros países, como a França, preocupam-se muito com a diversidade, mas fazem-na de maneira mais ocasional — costumam guardar as plantas que introduziram em ensaios para efeito de selecção, e, portanto, não têm esse objectivo de conservar algo que seja representativo. Portanto, conservam parcelas da diversidade de uma e de outra casta, ao acaso, enquanto nós fazemos isso de uma maneira mais objectiva, procurando conservar a amostra representativa que está também determinada com base em experimentação de campo, em experiências de simulação em computador. Está determinado quantas plantas é que devem ser conservadas de uma determinada casta, em determinada região — para representarem a casta tal como ela é hoje, a diversidade intervarietal, o número é da ordem de 70 plantas.

Nuno Miguel Borges:

E nós temos esse trabalho feito em Portugal?

Antero Martins:

Temos feito por metade. É um trabalho que vem já de há décadas: estas abordagem que fazemos da diversidade intervarietal vem do fim da década de 1970. Portanto, até agora temos feito bastante trabalho de conservação, mas o objectivo é dobrar o que temos conservado até ao momento. Há várias castas das quais ainda não encontrámos nenhuma planta na cultura, são castas que estão em vias de extinção. Estão representadas numa ou noutra colecção apográfica, mas não através de uma amostra representativa; estão representadas em geral através de uma planta, uma planta que depois foi multiplicada por seis ou um número dessa ordem, mas isso não representa a casta.

Nuno Miguel Borges:

Que é preciso para representar a casta?

Antero Martins:

É o tal número de 70 plantas, de uma região se ela for cultivada desde um passado distante; em várias regiões, temos de multiplicar esse número pelo número de regiões. Porque a priori, antes de fazer qualquer experimentação, nós não sabemos se uma determinada casta tem mais diversidade; quando ela é cultivada em várias regiões, não sabemos qual é a região que tem mais diversidade. Portanto, para iniciar um trabalho desses, primeiro tem de se fazer alguma revisão histórica, para saber se a casta-alvo é substancialmente cultivada numa região só ou em três regiões, digamos. Se for em três regiões, então tem de se fazer a prospecção de uma amostra representativa em cada uma delas, e isso dá 70 x 3.

Nuno Miguel Borges:

As 70 plantas de uma região têm de vir de parcelas diferentes?

Antero Martins:

Sim, é uma metodologia que tem muitos pormenores, mas o elemento-base é serem plantas marcadas ao acaso. Por exemplo, não se marcam muitas plantas numa vinha, porque aquela vinha pode ter sido enxertada com garfos vindos de uma outra vinha homogénea; não se marcam plantas em vinhas do mesmo proprietário; nem em vinhas que fiquem ao longo de uma grande via de comunicação existente há muito tempo, em que as populações circulam com muita frequência e, portanto, as videiras podem ter sido transportadas ao longo desse eixo com mais facilidade do que noutras direcções. Se há duas aldeias, digamos, que são próximas e que têm muita comunicação entre si, é provável que tenham a mesma diversidade genética de uma determinada casta. Por exemplo, entre o Dão e o Douro. Ao estudar a diversidade da Touriga Nacional, verificou-se que são muito parecidas as diversidades no Dão e no Douro. Isso significa que as regiões tiveram muita comunicação no passado, e seja qual for a origem da Touriga Nacional, ela terá viajado muitas vezes da região de origem para a outra região, e a diversidade misturou-se.

Nuno Miguel Borges:

Ou seja, quanto mais a casta circular, mais homogénea fica.

Antero Martins:

Sim. A diversidade fica igual nas duas regiões. Isso é o caso típico da Touriga. Já o caso que referi há pouco da Maria Gomes e da Fernão Pires, da Bairrada e do Ribatejo, aí terá havido poucas viagens da Bairrada para o Ribatejo. Quer dizer, a diversidade que foi levada da Bairrada para o Sul foi pouca, não foi a variabilidade toda existente na região da Bairrada.

Nuno Miguel Borges:

Onde fica o núcleo, fica a maior diversidade.

Antero Martins:

Se não foi levada muitas vezes da região de origem, então agora nós conseguimos distinguir. Na origem, tem mais diversidade, na região de importação tem menos.

Nuno Miguel Borges:

E no caso das ilhas?

Antero Martins:

No caso das ilhas, há poucas comparações, mas há algumas situações estranhas que estão ainda mal compreendidas. Por exemplo, a origem do Verdelho. Em princípio, aceita-se que as castas dos Açores e da Madeira terão ido do continente, mas o caso do Verdelho, que suponho ser o mais importante nas ilhas, não está comprovado. Aliás, a casta não aparece aqui no continente, e já foram feitos vários estudos para descobrir a origem da casta, ainda não inteiramente concludentes.

Nuno Miguel Borges:

Então, não se sabe de onde vem o Verdelho da Madeira?

Antero Martins:

Há algumas ideias, mas não são sólidas.

Nuno Miguel Borges:

Em Portugal, ao longo dos tempos as castas viajaram muito ou não? Ou depende das regiões?

Antero Martins:

Em geral, sim, viajaram muito, mas há algumas excepções. Por exemplo, o encepamento dos vinhos verdes é muito próprio, é algo diferente do restante do país. O Douro, uma região que tem mais diversidade intervarietal do que o país em geral, tem mais castas cultivadas no passado. O Algarve tem uma casta quase exclusiva, que é a Negra Mole. Há, assim, alguns casos, mas a norma é as castas estarem bastante espalhadas pelo país todo. Há castas que existem em todos os cantos do país.

Nuno Miguel Borges:

Brancas e tintas?

Antero Martins:

Brancas e tintas. O Arinto, por exemplo, existe em todo o lado.

Nuno Miguel Borges:

E a relação de Portugal com o estrangeiro? Nós recebemos muitas castas ou ficamos fechados e fiéis às nossas?

Antero Martins:

Na Península Ibérica, sim. Então nas faixas fronteiriças, há uma mistura profunda das castas, mas vai por Espanha adentro também. Há muitas castas de Espanha que são cultivadas também intensamente em Portugal, e que não se sabe qual será a origem. Há aquelas que já referi, a Tinta Caiada, Tempranilho, Rufete, Tinta Miúda, e muitas outras. Quando se fala da evolução das videiras cultivadas por regiões, por países, a Península Ibérica é uma unidade que merece ser estudada. As realidades de Portugal e Espanha não são profundamente diferentes. Há muita parecença.

Nuno Miguel Borges:

E no contexto europeu? Portugal é um pais com elevada diversidade nas vinhas?

Antero Martins:

Ao compararmos a diversidade das castas daqui com as do estrangeiro, há essa dificuldade de no estrangeiro não se fazerem esse tipo de análises. O conhecimento que existe é aquele que temos obtido com algumas experiências, que abarcam experiências relativas a castas das quais também recolhemos amostras em Espanha, França e Itália. Fomos até aí.

Nuno Miguel Borges:

Ainda temos muitas vinhas velhas? É fácil colher as amostras de diversidade?

Antero Martins:

Em cada ano que passa, é mais difícil, porque todas as vinhas que se plantam agora são plantadas com material homogéneo. Material que é oficialmente controlado: as vinhas são quase todas feitas com apoios comunitários que impõem condições de controlo dos materiais de propagação. São privilegiadas as plantações com material certificado porque são clones. O clone é o tipo de material mais homogéneo, e mesmo quando são plantados materiais não certificados em si mesmos, são alvo de um processo de certificação, embora não se chamem depois certificados; é um material standard, que é uma classe de material europeia e portuguesa. Esse controlo dos materiais de propagação afunila a base genética, elege materiais que são todos iguais e acentua fortemente a erosão genética. Está a acontecer uma verdadeira catástrofe nesta área, da qual as viticulturas mundial, europeia e portuguesa não se estão a aperceber devidamente. Nós estamos a fazer um trabalho único à escala mundial. Toda a gente está. Quer dizer, detectam o problema e escrevem muito sobre ele, mas não levam à prática um plano sério de conservação para salvar a diversidade criada no passado de séculos e milénios. Como disse, nós temos o trabalho feito pela metade, temos cerca de um pouco mais de 30 000 genótipos conservados de todas as castas autóctones. França, que é um dos países mais avançados do mundo, meca da vitivinicultura, tem, quando muito, 20 000 genótipos conservados, e com metodologias mais precárias do que as que usamos em Portugal.

Nuno Miguel Borges:

Quando diz nós em Portugal, é quem?

Antero Martins:

Nós foi primeiro uma rede informal de colaborações lançada por três instituições em 1978: a UTAD, de Vila Real, o VINIAVE, que é a rede de investigação, e o ISA. Começámos em 1978, mas alargámo-nos rapidamente a um conjunto de mais de uma quinzena de instituições, sobretudo direcções regionais de agricultura e associações de viticultores. Fizemos esse trabalho até agora, mas em 2009 foi criada uma outra instituição, essa já uma instituição formal: a Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira, a PORVID, que engloba 24 associados, alguns originais, nomeadamente as três instituições iniciais e várias empresas do país, e é essa estrutura que assegura o trabalho de reconhecimento, utilização económica e conservação da diversidade intervarietal. Uma vez por outra, ao fazer esse trabalho, defrontamo-nos com problemas que são relativos à diversidade intervarietal, entre castas. Um pouco relacionado, deparamos também com os problemas das videiras silvestres, que são as antecessoras da viticultura, das videiras cultivadas. E também fazemos algumas abordagens, mas abordagens assessoriais, desses outros compartimentos de diversidade. O foco é mais de 90% na diversidade intervarietal.

Nuno Miguel Borges:

Que mais se pode dizer de relevante acerca deste assunto?

Antero Martins:

O principal aspecto e aquele que motiva mais gente, aquele que é percebido como mais interessante para o sector, é a selecção. Nós, explorando a diversidade intervarietal, conseguimos extrair de dentro de cada casta uma pequena parte da diversidade genética que proporciona resultados enormemente superiores aos da casta no seu todo. Fazemos selecções com ganhos genéticos muito grandes em relação à média da casta, principalmente rendimento. Desde meados da década de 1980, tendo começado em 1978, que começámos a chegar ao fim de processos de selecção de várias castas com ganhos que chegam a 35% de aumentos de rendimento. Portanto, conseguimos selecionar dentro da casta partes dessa casta com características muito diferentes da própria, para melhor. Ou para mais rendimento, ou para mais teor de açúcar, ou para mais antocianinas, etc., e já vamos no ponto de estarmos a selecionar partes que são mais resistentes ao calor, que é um problema altamente sensível no presente, o das mudanças climáticas. Estamos também a começar a procurar diversidade dentro da casta em relação ao comportamento perante as doenças mais gravosas, por exemplo míldio e oídio, e pensamos que iremos conseguir ganhos nessa direcção. Portanto, isto representa muito dinheiro. Quando for conseguido pegar numa casta e pô-la a produzir mais 35% de rendimento, e isto generalizado às castas todas no país inteiro, representará centenas de milhares de euros de ganho por ano.

Nuno Miguel Borges:

Mas há um afunilamento da diversidade com essa selecção?

Antero Martins:

Não, isso aconteceria se nós não fizéssemos mais nada, se seleccionássemos, afunilássemos, a variedade genética até chegar ao clone, se reduzíssemos uma casta a plantas todas geneticamente iguais; sim, agora tiraríamos proveito, mas convidaríamos os vindouros a não tirar mais proveito nenhum dessa diversidade. Ela desapareceria. Mas não, nós estamos a fazer duas coisas em simultâneo: primeiro, é não seleccionar clones — o que todo o mundo selecciona preferencialmente são clones —, é não reduzir milhares e milhares de coisas diferentes que existem dentro de uma casta a uma só, um clone, e ficar amarrados a essa coisa. Porque daqui a 30 anos é preciso uma coisa diferente e ela já não existe. Os vindouros ficam condenados àquilo que os de hoje acham que é bom; os vindouros já não acharão, mas estarão condenados a usar a receita do passado.
Mas fazemos então a primeira contramedida para evitar essa fatalidade, que é seleccionar preferencialmente um outro tipo de material, que não o clone: é a chamada metodologia policlonal. Essa metodologia, que é radicalmente nova, com bases teóricas e com resultados práticos completamente diferentes da selecção clonal, foi aprovada em 2019 pela Organização Internacional da Vinha e do Vinho como uma metodologia recomendada para o mundo inteiro. E já é beneficiária de um dispositivo legal que foi criado em Portugal, mesmo sem cobertura ainda da União Europeia, da legislação da EU relativa à certificação, portanto já foi introduzida aqui uma modificação legal que favorece a utilização de material policlonal. Outra medida mais drástica, mais profunda, é fazer a conservação; visto que há actualmente processos que degradam a diversidade, então vamos conservá-la directamente, isto é, marcar dentro de cada casta um conjunto de plantas que representam a variabilidade de toda a casta. Aquilo que referi um pouco mais atrás. E essa amostra representativa, quando se trata de uma casta cultivada numa região então na ordem de 70 plantas, se forem várias regiões, tem de se multiplicar pelo número. Por vezes, conservamos mais do que isso, quando a casta é muito importante. Por exemplo, do Alvarinho, da Touriga, do Arinto conservamos amostras substancialmente maiores. Do Alvarinho, devemos ter um número de mais de 500 genótipos conservados.

Nuno Miguel Borges:

Como estão conservados?

Antero Martins:

De várias maneiras. Primeiro, é conservado em vasos, que é a maneira mais exequível para metermos isto tudo no campo. Se fosse sob a forma de vinha normal, era uma quantidade de vinhas muito grande, e isso, enfim, deperecia com muitas dificuldades logísticas e financeiras, etc. Portanto, primeiro conserva-se em vasos, quatro vasos por cada planta marcada, numa colecção que está numa propriedade cedida pelo Estado à Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira, a PROVID, que já referi há pouco, em Pegões, um pólo experimental.
Outra modalidade de conservação são os ensaios que se fazem para fins de selecção, mas isso só se aplica a umas cerca de 70 castas que estão em selecção, não a todas. É uma outra forma de conservação, a conservação redundante, e que já faz a ponte para a utilização; não é só conservar, mas é conservar e utilizar, seleccionar. E finalmente, estamos agora a planear, já pensamos nisto há muito tempo, a instalação de uma colecção redundante de todos os genótipos que estão em vasos, porque é uma condição importante para efeitos de conservação da diversidade de todas as plantas, de todos os tipos: os bancos de genoplasma que conservam a diversidade de inúmeras plantas no mundo. Essa conservação para ser segura deve ser redundante, deve haver mais do que um sítio em que os mesmos genótipos estão conservados. Certamente, já ouviu falar de um banco de genoplasma instalado a uns 100 km do Pólo Norte, na Noruega, que é um armazém de conservação a dezenas de metros abaixo do nível do solo, uma área com temperaturas de muitos graus abaixo de zero. Esse banco de genoplasma é um banco de backup, um banco de conservação redundante de coisas que já estão noutros bancos pelo mundo fora. Há materiais portugueses, não da videira, porque a videira conserva-se de uma maneira muito mais difícil do que outras espécies — as espécies em geral são conservadas através de sementes e a videira não pode ser conservada através de sementes, porque daí resultaria algo completamente diferente daquilo que queremos conservar, que são as plantas com a informação genética que têm agora. Se semearmos uma semente de uma planta com determinada informação genética, a semente não tem essa informação genética, porque resulta de um processo de reprodução sexuada que muda o conjunto de genes que o descendente tem em relação aos progenitores, como acontece com muitas plantas, e com animais, com a espécie humana em particular: o filho de um casal não é igual nem a um progenitor nem a outro, é sempre diferente. Portanto, a videira tem de ser conservada através de plantas mesmo; e é muito mais difícil do que conservar sementes num frigorifico, que é simplicíssimo em termos comparados. Conservar no campo, enfim, é fácil de ver que é uma tarefa muito mais complexa. E então, é por isso que ainda não temos a tal colecção redundante no campo, mas estamos a planeá-la para muito em breve. Outra vantagem além da conservação é podermos produzir madeira para distribuir aos viticultores, madeira de castas que não são de primeira linha, que não estão em selecção porque não dispõem de material certificado; mas para haver algum material de todas as castas, mesmo que sejam de terceira, ou quarta, ou quinta linha, para qualquer viticultor poder fazer uma vinha com qualquer das castas que constam da lista oficial.

Nuno Miguel Borges:

Para tentar contrariar a uniformidade.

Antero Martins:

Exactamente! É para proporcionar aos viticultores a possibilidade de cultivarem todas as castas, não só umas tantas que estão mais na moda ou que têm características mais adequadas para satisfazer o mercado, etc.; para criarem novidades, para diversificarem os vinhos. E nota-se um interesse crescente do sector, de empresários, em dar esse passo, em ir além da cultura de um número de castas da ordem de poucas dezenas, quando temos um parque de castas da ordem das 250. Portanto, há muitos viticultores que estão a dar o salto; mesmo com um conhecimento muito frágil das aptidões da casta, estão a correr o risco de cultivar castas pouco conhecidas para criarem, para inventarem novos vinhos, satisfazerem mercados de nicho, etc.

(Continua.)

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