Velhas são as vinhas Menu

Virgílio Loureiro

Professor e investigador no Instituto Superior de Agronomia na área da Microbiologia. Enólogo.

Entrevista: Nuno Miguel Borges
Fotografia: Sofia Pratas Morais

Nuno Miguel Borges:

Porque é que as vinhas velhas são importantes? Porque é que elas devem existir?

Virgílio Loureiro:

Bem, há logo uma questão de fundo que é preciso esclarecer: que é uma vinha velha? Para mim, uma vinha velha é aquela que foi feita claramente antes da revolução vitícola que houve depois do 25 de Abril, e, portanto, tem mais de medieval do que do século XXI, ou do século XX. Porque a viticultura portuguesa foi medieval praticamente até à década de 1950, quer dizer, introduziram o fio de arame e pouco mais, o resto é medieval.

Nuno Miguel Borges:

Que é uma vinha medieval?

Virgílio Loureiro:

Para mim, uma vinha medieval é uma vinha análoga às que havia na Idade Média. São quase todas as velhas que há pelo país, não têm arames, plantadas de qualquer maneira, tudo misturado, e podadas de acordo com a informação que receberam dos pais, que, por sua vez, receberam dos avós, e foi sempre por conhecimento empírico, transmitida de geração em geração. Nesta perspectiva, ainda temos muitas vinhas medievais em Portugal. Foram todas enxertadas, por causa da filoxera, mas continuam a ser medievais.

Nuno Miguel Borges:

Neste projecto, as vinhas têm mais de 80 anos.

Virgílio Loureiro:

Uma vinha velha tem de ter mais de 80 anos. Porquê? Porque era feita com uma misturada de castas, brancas e tintas, temporãs e serôdias, boas e más, produziam muito e produziam pouco, era o que havia. Hoje em dia, isso é importante sobre muitos pontos de vista. O primeiro, talvez o mais importante de todos, é o património genético que se encontra nas vinhas velhas. Se perguntar a qualquer pessoa ligada ao vinho que castas francesas é que existem, dizem sempre as mesmas: Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc, Chardonnay, Sauvignon Blanc; e depois, começam aflitos a ver se ainda há mais alguma. Porquê? Porque a viticultura moderna usa meia dúzia de castas, todas as outras praticamente desapareceram. Mas as castas internacionais vão tendo erosão genética. Por exemplo, o Syrah, hoje há cada vez mais gente a contestá-lo, porque morre com frequência; o Chasselas, na Suíça, foi tão apurado que não era só uma casta, era uma casta e só um clone, não havia mais nada. Quando começou a haver problemas com esse clone, de repente, quase já não há Chasselas, pois os outros tinham-se perdido todos. Ora bem, nesse aspecto a viticultura medieval tem lá a riqueza genética toda, e hoje as vinhas velhas são, por assim dizer, uma Arca de Noé de biodiversidade vitícola, e isso é muito importante. Além disso, tem uma série de castas que já não estão na moda, já não são usadas, porque em Portugal, com os dinheiros de Bruxelas, começou a caminhar-se no sentido da Europa, e já são maioritariamente meia dúzia de castas em todo o país, já só se utilizam 30 das 256 castas que existem. Portanto, as vinhas velhas, como ainda têm muitas das castas antigas, permitem fazer vinhos com sabores e aromas diferentes dos actuais. Produzem é pouco, porque já estão velhas. Depois, têm um raizame muito desenvolvido, que permite resistir a todas as oscilações climáticas. Quer dizer, uma vinha nova tem um raizame pequeno e, se for regada, as raizes ficam à superfície. Ora, numa vinha velha de sequeiro as videiras sofrem bastante e as raízes têm de ir pela terra abaixo à procura dos nutrientes e da água. Por isso, todas as vinhas velhas têm um sistema radicular muito desenvolvido que as torna quase imunes às secas ou ao excesso de água na vindima. Portanto, tudo isto contribui para que produzam excelentes uvas, tenham menos oscilações do que as vinhas actuais e, como produzem pouco, a qualidade é melhor. Os grandes vinhos do mundo são todos feitos com produções normalmente abaixo de seis toneladas por hectare e frequentemente abaixo das quatro. As uvas estão mais concentradas, e, portanto, têm mais aroma e mais sabor. Este é basicamente o segredo e o interesse das vinhas velhas, com um pequeno detalhe: quem tem de as cultivar fá-lo por ocupação de tempos livres ou por paixão, porque não é para ganhar dinheiro. Não são valorizadas, antes pelo contrário.

Nuno Miguel Borges:

Os custos são muito altos nestas vinhas porque exigem muita mão-de-obra.

Virgílio Loureiro:

Os elevados custos do cultivo pouco contam, porque os produtores estão reformados, são velhos e ocupam o tempo desta maneira; em vez de estarem em casa no sofá a olhar para a televisão, estão no campo à volta das vinhas.

Nuno Miguel Borges:

Mas quem quer fazer grandes vinhos não devia olhar para estas vinhas? O argumento de serem parcelas pequenas não faz sentido, porque muitos dos grandes vinhos vêem de parcelas pequenas.

Virgílio Loureiro:

Sim, em princípio a regra é essa. Fazer um grande vinho de autor não pode ser com 100 mil garrafas. São 500, 1000, 5000, 10 000, no máximo 20 000. Acima disso, já é industrial. Mas a qualidade também se tem em vinhas industriais muito bem cultivadas, porque hoje, se for aplicada uma viticultura científica, elas ficam equilibradas e dão vinhos bons, provavelmente tão bons como os de uma pequena vinha velha, só que num caso é uma vinha industrial e noutro uma vinha cultural, e o vinho é um dos poucos produtos onde o ambiente e a história à volta dele têm tanto ou mais peso do que a técnica. Portanto, há vinhas industriais modernas que são capazes de produzir matéria-prima tão boa como as vinhas velhas, mas falta-lhes a patine, o carisma e as histórias. Embora seja raro falhar nas vinhas velhas, nas vinhas industriais, principalmente em Portugal, nem sempre se acerta, porque a viticultura é pouco consistente e os viticultores têm poucos serviços de apoio técnico. Por exemplo, vai a Bordéus e há não sei quantos gabinetes técnicos e laboratórios que permitem analisar todos os parâmetros analíticos necessários para saber se uma vinha está equilibrada; em Portugal, há poucos desses gabinetes e dificilmente cobrem o território.

Nuno Miguel Borges:

O mundo antigo do vinho era mais ou menos análogo ao actual?

Virgílio Loureiro:

A biodiversidade vitícola era muito mais rica no passado, mas eu não tenho dúvidas de que os vinhos hoje são muito melhores do que no passado, porque há a técnica e o conhecimento científico, que permitem fazer bons vinhos. Mas, no passado, quando as coisas eram bem feitas, os vinhos eram tão bons como os melhores de hoje. Nós temos sempre a ideia de que os artesãos não sabiam fazer as coisas, mas os melhores artesãos do passado eram os intelectuais da época, que eram os monges ― a inteligência e o conhecimento estavam nos mosteiros. Portanto, esses é que tinham sentido crítico, sentido de observação, sentido estético, gosto refinado ou requintado. E, quer dizer, quando era para ganhar dinheiro, exploravam como estes exploram os pequenos, quando era para fazer o melhor, para as festas deles, faziam tão bem como se faz hoje. Aliás, eu, na Adega Cooperativa de Penalva, procurei fazer réplicas de vinhos do passado, eclesiais e senhoriais, que eram feitos com todo o cuidado, o clarete e o branco maceração. Portanto, são vinhos excelentes que eles já faziam aqui há 400 anos. Agora, não era a regra, era a excepção.

Nuno Miguel Borges:

A actual forte redução do número de castas não está a influenciar uma semelhança entre os vinhos?

Virgílio Loureiro:

Normalmente, a igualização dos vinhos não se deve à redução das castas. Claro que a redução das castas ajuda, pois se toda a gente faz vinho com a mesma casta…, mas há outros factores. Quando as uvas amadurecem para lá do desejado, com 14% ou 15% de álcool provável, já perderam a sua identidade. Porquê? Porque elas já não estão a ganhar açúcar à custa da síntese, estão a ganhar açúcar à custa da perda de água, desidratação, e, a certa altura, os cachos são sacos de açúcar, de matéria corante e alguns ácidos, porque os aromas que os diferenciam já se perderam. Quer dizer, uma passa não tem o perfume de um bago fresco. Ainda por cima, vinificam os tintos com curtimenta e a curtimenta anula o efeito da casta. Quando se faz vinho com curtimenta, pouco interessa a casta, porque a curtimenta sobrepõe-se ao carácter da casta e os vinhos sabem quase todos a curtimenta. Uma vez, numa prova com o Anselmo Mendes, na quinta dele, em Monção, provei Alvarinho e Loureiro de curtimenta. «Anselmo, os vinhos são iguais!», a certa altura já não sabia qual era um e qual era o outro. Porquê? Porque a curtimenta sobrepôs-se ao carácter do Alvarinho e ao carácter do Loureiro. Portanto, há uma série de factores determinantes para a igualização. Por exemplo, quando se usa o frio na fermentação de brancos, está a favorecer-se uma fermentação lenta, e quando a fermentação é lenta há tendência para as leveduras produzirem aromas de fermentação perfumados, que é quando os ácidos do vinho se misturam com o álcool que sai lentamente, e, portanto, a reacção dá ésteres, que cheiram e sabem a frutas: banana, frutos tropicais, ananás, tudo isso não é da casta, é das fermentações a baixas temperaturas. Portanto, quando se fazem vinhos brancos de qualquer casta a 12ºC, todos cheiram ao mesmo: aos aromas das leveduras. Quando se estagiam tintos em barricas novas de carvalho, durante muito tempo, todos sabem a madeira. Portanto, a melhor maneira de tirar identidade ao terroir e às casta é através das técnicas modernas que estão na moda: sobrematuração das uvas, frio, madeira, muita curtimenta, muita extração ― tudo isso igualiza os vinhos. É por isso que é um desconsolo provar 50 vinhos num concurso, pois é tudo igual, não se sabe se é Douro, se é Alentejo, se é Algarve.

Nuno Miguel Borges:

Então, à partida os produtores que fazem vinhos de vinhas velhas têm uma identidade…

Virgílio Loureiro:

Têm identidade se não usarem essas técnicas, se não meterem os vinhos nas barricas novas, se não fermentarem a baixas temperaturas, como faz, por exemplo, o António Madeira. Tem bom senso. Quer dizer, se calhar põe um bocadinho de madeira porque a madeira sofistica, mas não se nota, para não se sobrepor ao resto. Porém, se quiser ganhar dinheiro, a madeira tem de se notar, porque só quando se nota é que a maior parte das pessoas está disposta a pagar mais: «Ah, este tem madeira!» Pagam logo mais. Porquê? Porque detectaram a madeira. Mas isso é o cidadão comum. Quando cheira a frutos tropicais, «este é que é bom», mesmo que seja enjoativo, e nem se importam de acompanhar sardinhas assadas com um vinho a cheirar a flores, porque ele só cheira a flores quando o metem no copo e o provam pela primeira vez. A partir daí já está interiorizado que o vinho é muito bom e comem as sardinhas todas com o vinho a cheirar a flores.

Nuno Miguel Borges:

Se olhamos para o vinho numa perspectiva cultural, temos de olhar para as vinhas também numa perspectiva cultural e de património.

Virgílio Loureiro:

Claro. Com vinhas medievais, não faz sentido fazer vinhos com 15 graus, que é o que andam a fazer nas Terras de Sicó. Um dos produtores da região saltou-me em cima dizendo: «Nós estamos noutra era, não podemos estar presos à anterior.» São pontos de vista. Mas com uma vinha medieval, não se pode fazer um vinho à moda do Parker com 15 graus, não bate a bota com a perdigota. Em Portugal, a problemática do conceito, da cultura, da história, ainda tem um caminho a fazer.

Nuno Miguel Borges:

Porquê?

Virgílio Loureiro:

Por alguma incultura e por a maior parte das pessoas ser muito condicionada pelas modas.

Nuno Miguel Borges:

Não é um bocado estranho sermos um país com uma tradição de vinho muito antiga, mas depois não sabermos lidar com essa cultura?

Virgílio Loureiro:

Infelizmente, é verdade. Temos pouco auto-estima e damos pouca atenção à cultura. Quem é que sabe dar valor ao vinho? Normalmente, não são as pessoas do vinho, são as pessoas da cultura. Gente com sensibilidade, sentido estético e com mundo.

Nuno Miguel Borges:

Para se apreciar um vinho é preciso ser-se culto?

Virgílio Loureiro:

Há um ditado popular que responde a essa pergunta : «Só se gosta do que se conhece.» Em Portugal, toda a gente aprecia e avalia, normalmente mal. Se não, os vinhos fáceis não seriam os que ganham mais medalhas. Agora, quando se prova os vinhos do António Madeira e se tem sentido estético e sensibilidade, percebe-se que aquilo é outra coisa. Aquilo, mais do que um negócio, é cultura.

Nuno Miguel Borges:

Sendo Portugal um país tão heterogéneo ao nível de paisagem, encontramos reflectida nas vinhas velhas essa diversidade. Elas são um bom retrato do país do século XX, e mostram que é muito diferente de Norte a Sul.

Virgílio Loureiro:

Exactamente, era um país muito diverso sob todos os aspectos, incluindo a forma de condução da vinha. Se virmos, por exemplo, a Beira Interior, o Dão e a Bairrada, as vinhas comportam-se de maneira completamente diferente nas três regiões. A Bairrada tem mais humidade, mais influência marítima, solos mais ricos, e as videiras são mais pujantes, e, portanto, as vinhas velhas têm uma expressão na paisagem brutal, são muito mais altas, mais retorcidas, impressionam mais. No Dão, já são menos ostensivas na paisagem; e na Beira Interior, se chegarmos às zonas mais frias e pobres, como, por exemplo, em Figueira de Castelo Rodrigo, nos Povos de Baixo, já são pequenas. Provavelmente, são cultivadas todas da mesma maneira: por instinto. Os produtores lidam com as cepas em função da resposta vegetativa delas, mas se fosse transferido para a Bairrada, um produtor da Beira Interior provavelmente faria vinhas iguais às que há na Bairrada, com o meio a impor o seu peso. Porquê? Por causa da expansão vegetativa da cepa, que depois cada um, com a sua formação empírica, sem bases técnicas fortes, faz de acordo com o bom senso. E se for ao Minho, ainda mais. O Minho é uma situação muito especial, muito diferente. O clima do Minho é bastante parecido com o da Bairrada, mas a paisagem é completamente diferente. Hoje, sei que a principal razão para que isso aconteça tem que ver com as relações de posse e uso da terra. No Minho, sempre houve caseiros, desde o século XI, que trabalhavam para os senhores, que eram conhecidos pelos homens de costa direita, que participavam na guerra, caçavam e cobravam as rendas. E, portanto, os caseiros que é que queriam? Produzir comida para alimentar a família, e o vinho era produzido onde não se podia produzir comida, com as cepas a trepar pelas árvores na bordadura dos campos. O clima é semelhante ao da Bairrada, uma expansão vegetativa brutal, mas as vinhas eram muito diferentes, por haver caseiros no Minho e serem raros na Bairrada. Quando se procura ver numa perspectiva integrada, global, é muito giro, porque vamos encontrar correlações absolutamente inusitadas que não fariam muito sentido a priori. Ou seja, a marca da vinha na paisagem em Portugal é muito mais do que aquilo que possa parecer à primeira vista, tem que ver com causas muito profundas.

Nuno Miguel Borges:

Ao indagarmos o mundo das vinhas velhas, vislumbramos uma forma de trabalhar essas vinhas. A vinha antiga é muito mais marcada pelo homem, pelo seu trabalho manual, e pela paisagem, do que a vinha moderna.

Virgílio Loureiro:

Claro. A vinha moderna é igual em toda a parte. A vinha aramada moderna é igual na Califórnia, em qualquer região de Portugal, ou noutro país qualquer. Aplicam-se as regras da ciência e da técnica, procura optimizar-se, com consequências gravosas. A maior parte dos homens da folha de Excel só se preocupa com as contas e não quer saber das implicações que uma técnica uniforme e global provoca na paisagem, é a igualização total. A vinha aramada está para a paisagem vitícola como a barrica de carvalho está para o estilo de vinho, igualizar tudo em todo o mundo.

Nuno Miguel Borges:

A ligação do homem à terra e ao vinho era muito mais forte antigamente do que hoje em dia.

Virgílio Loureiro:

Evidentemente, e o antigamente é só recuar 50 anos, não é preciso mais, até ao 25 de Abril. Antigamente, o viticultor dedicava-se à terra a tempo inteiro, agora não. A vinha era a razão da sua existência. Hoje, não. Eu tenho reflectido um bocadinho nisso e há uma questão muito importante que tem de ser posta em cima da mesa: uma pessoa não pode ignorar que o grande objectivo da vinha e do vinho é produzir riqueza, e quanto mais riqueza se produz, em princípio, melhor vivem as pessoas de uma determinada região. Esse é o pressuposto base inicial, mas na realidade não é assim, porque apenas se extremam as diferenças. Hoje em dia há, por exemplo, muitas vinhas modernas no Dão, mas os viticultores continuam a viver com uma mão atrás e outra à frente e continua a haver abandono da vinha. Os grupos económicos trabalham de maneiras uniformes e globais, sacam o dinheiro, mas a região pouco beneficia. Portanto, há um custo que a região tem, que é perder a sua identidade, e um benefício que a região não tem, que é a riqueza produzida não melhorar a qualidade de vida de quem anda lá no dia-a-dia. Acho que essa é uma realidade fruto do capitalismo que temos de rever. Quer dizer, a sustentabilidade é também manter a paisagem e a identidade das regiões, e isso não está a acontecer. Eu diria mesmo que hoje em dia uma vinha antiga é um fascínio para meia dúzia de pessoas com sentido estético e com sentido de cidadania, mas para o homem da folha de Excel é uma coisa que se deve arrancar o mais depressa possível para pôr igual ao que se faz em todo o lado.

Nuno Miguel Borges:

E para o apreciador de vinhos?

Virgílio Loureiro:

Quer dizer, há muitos apreciadores, há aqueles que eu chamo de beberrões, que têm pouco sentido crítico e vão sempre atrás das modas do momento. Depois, há o enófilo, na verdadeira acepção da palavra, que encontra num copo de vinho muito mais do que aquilo que ingere: é a história, é a cultura, é a tradição, é a criatividade, mas que não existe na maior parte dos consumidores. Acho que o gosto pelo renascer das vinhas velhas e o respeito que hoje há por elas continuam a ser de uma minoria, de 5% da população, 10% eventualmente, porque, para os restantes, metade pura e simplesmente é capaz de pensar que aquilo deve ser tudo arrancado e posto moderno, e os outros são indiferentes. Portanto, não se preocupam com essa questão e pouco ou nada reflectiram na identidade que a paisagem vitícola dá a uma região.

Nuno Miguel Borges:

Para se trabalhar bem estas vinhas, deve ter-se consciência dessa identidade.

Virgílio Loureiro:

Exactamente, quer dizer, qualquer enólogo consciente, e enólogo com E maiúsculo, na verdadeira acepção da palavra, não pode ignorar a origem das uvas. Se as uvas são de uma vinha antiga, com estatuto de nobreza, não pode fazer um vinho para se vender no supermercado com 50% de desconto dia sim dia não, tem de fazer uma coisa diferente. É por isso que eu costumo dizer que o enólogo tem basicamente duas componentes muito importantes na sua actividade: uma técnica, que passa por respeitar os cânones da Enologia e não deixar estragar as uvas; outra estética, que passa por fazer o vinho de acordo com o conceito produtivo das uvas que vão dar o vinho. O importante é saber conjugar o estatuto da vinha com o estilo que ele merece, e com a região; não é só o vinho, é a vinha, é a região, é a casta, é a história, é tudo isso. Nesse aspecto, acho que em Portugal ainda temos um caminho a percorrer, porque esta componente estética do enólogo só se consegue quando uma pessoa estuda muito, reflecte muito, e não se preocupa apenas com a fisiologia da videira ou com a química do vinho. É muito mais do que isso: é a história, é a arqueologia, é a antropologia, é a paisagem. O vinho e o enólogo têm esse fascínio: para serem devidamente reconhecidos, têm de integrar tudo, e eu acho que em Portugal nem todos os enólogos integram tudo.

Nuno Miguel Borges:

Por falta de cultura, de esforço?

Virgílio Loureiro:

Acho que a maior parte das vezes é por pressão ambiental; vivem no seu reduto, muitas vezes no Portugal profundo, que os asfixia em termos de abertura de horizontes e de criação de uma consciência crítica. 

Hoje em dia, toda a gente faz vinho bom, porque tem obrigação disso, mas o vinho não pode ser só bom, tem de ser muito mais do que isso. Tem de ter um conceito de acordo com todo o ambiente produtivo, e, nessa perspectiva, fazem-se muitos disparates em Portugal que já não se fazem noutros países com mais preocupações, principalmente na Europa. Quer dizer, um Shyraz ou um Chardonnay da Beira Interior, que é uma região que conheço bem, são bons vinhos em qualquer parte do mundo, mas um enófilo com sentido estético e culto gosta de beber esses vinhos tendo no rótulo Beira Interior? Não, porque esse enófilo exige muito mais do que um vinho bom, e nesse aspecto muitos enólogos portugueses estão reféns do estilo de vinhos que se vende melhor, pois o patrão que tem de vender o vinho o mais depressa possível, mesmo que seja muito barato. Portanto, têm de ir sempre atrás das modas e do que dizem os gurus que influenciam as vendas, principalmente do vinho barato. Esse é um estigma que Portugal tem, e muitos dos enólogos que poderiam desabrochar para outras dimensões, têm dificuldade por causa da pressão do meio em que trabalham. Disso não tenho dúvidas. Um dos privilégios que tenho, e que reconheço, é que faço vinhos em muitos sítios e conheço todas as regiões. Ora, quem só faz vinhos numa região tem muito mais dificuldade em perceber as coisas, porque está subjugado àquele ambiente. Eu sinto isso principalmente na metade oriental do país, junto à fronteira com a Espanha, que é o chamado Portugal profundo, com um carisma absolutamente único, fantástico, uma grande identidade, mas vai sempre atrás, porque as pessoas não sabem tirar partido de todo esse carisma e de toda essa identidade.

Nuno Miguel Borges:

Quem está a beber o vinho consegue reconhecer no copo as características únicas da vinha, da região, a parte cultural, ou faz parte do imaginário quando se bebe?

Virgílio Loureiro:

Quer dizer, nós não podemos ignorar isso, o imaginário quando se bebe está sempre presente, porque a prova de vinhos é fortissimamente condicionada por todo o ambiente em que ela decorre, mas para qualquer pessoa com sentido crítico, que bebe por prazer e para viver momentos especiais, e não para matar a sede, com o tempo consegue começar a encontrar tudo isso. Tenho amigos que provam um vinho pela primeira vez… Por exemplo, um estrangeiro que chega aqui prova um vinho pela primeira vez e percebe logo se é um vinho especial ou não. Porquê? Porque normalmente o vinho mostra-se facilmente para quem está preparado. Posso dar-lhe o exemplo de vinhos que fiz em Penalva do Castelo, o Cerceal em brancos e o Tinta Pinheira em tintos. A primeira vez que os fiz e os dei a provar à gente de lá ainda não os tinham metido na boca e já estavam a dizer que não prestavam, porque o senso comum era dizer que aquelas castas não prestavam, porque havia outras mais famosas. Penso que hoje isso mudou e sinto muito orgulhoso por ver outros produtores da região a fazer vinhos de Cerceal e Tinta Pinheira, mas a esmagadora maioria continua a olhar de lado para estes vinhos. Porquê? Porque não têm a sorte de encontrar neles aquilo que eles têm de diferente e original. Normalmente, os vinhos contam tudo, não só quando são próprios de uma determinada região e com identidade, mas também pela forma como as vinhas são cultivadas. Qualquer pessoa com algum sentido estético percebe que uma vinha que produz 15 toneladas por hectare não vai dar um vinho que impressione tanto como uma vinha ao lado que só produz cinco toneladas por hectare. Portanto, não é só a região, não é só a casta, é também a forma como o produtor trata a vinha e produz as uvas. Tudo isso é perfeitamente possível detectar no copo quando as pessoas apreciam o vinho em vez de apenas o beberem.

Nuno Miguel Borges:

Na entrevista ao Sr. Abel Nuno, da Quinta das Bageiras, perguntei-lhe se as uvas antigamente eram diferentes, com os numerosos cuidados ao longo do ano, utilizarem estrume, não aplicarem herbicidas, etc. Ele respondeu que sim, que as uvas eram diferentes.

Virgílio Loureiro:

Eu também acho que sim.

Nuno Miguel Borges:

O tipo de trabalho que eles tinham com a vinha ao longo do ano reflectia-se na uva.

Virgílio Loureiro:

Exacto. É o mesmo com a pecuária: quando se trata um bezerro com carinho, à moda antiga, a carne é diferente de um outro que está metido numa vacaria entre quatro ferros a comer ração. Há diferenças grandes e eu acho que pessoas com sensibilidade e sentido crítico notam as diferenças, ainda que não se possa ignorar que o contexto em que o vinho é provado condiciona muito. O pai do Mário Sérgio muito provavelmente consegue perceber essas diferenças todas quando sabe que um vinho foi tratado assim e o outro foi tratado assado, se não souber é capaz de ter mais dificuldade. Mas o encanto do vinho é isso mesmo, não é só o que está no copo, mas é todo o ambiente que se cria à volta dele. Eu, por exemplo, como apreciador, bebo muito pouco, mas aquilo que bebo procuro apreciar na plenitude. Para um vinho especial que vou abrir, vou criar um ambiente para tirar o máximo de prazer; se não estiver bem disposto, não vou abrir a garrafa. Tudo isso é muito importante.

Nuno Miguel Borges:

As vinhas velhas podem ser uma maneira de muitos enólogos ganharem sensibilidade para a vinha e para o território.

Virgílio Loureiro:

Claro, e mais: hoje em dia, há uma consciência de que é importante recuperar vinhas velhas, mas atenção que também é preciso recuperá-las com cuidado, com sentido crítico, não é de repente aplicar às vinhas velhas as técnicas das vinhas modernas. Coitadas, podem apanhar um choque. É preciso fazer tudo com sabedoria, e essa sabedoria é o saber interpretar as coisas. Eu costumo dizer que um enólogo é muito parecido com um maestro que interpreta a partitura à sua maneira e dá-lhe o toque pessoal. Os melómanos, na sua maior parte, quando ouvem um maestro tocar uma partitura e logo a seguir ouvem outro maestro tocar a mesma partitura, notam as diferenças, a dificuldade é conseguir notar essas diferenças quando só ouvem um. É o caso do vinho; é fácil comparar dois, é mais difícil provar só um, isso vem com o treino e com o empenho das pessoas. Por exemplo, uma coisa que percebi já há muito tempo: provar vinhos, acima de tudo, é um fortíssimo exercício de concentração, uma pessoa só aprecia realmente um vinho quando se concentra nele, não é estar com uma série de amigos na galhofa e ir bebendo e dizer que este é melhor do que aquele. Não! É um monólogo entre o vinho e quem o bebe, num esforço de concentração para tentar perceber o vinho completamente. Isso é que é provar um vinho, e a maior parte das pessoas não faz esse exercício de concentração. É como na música, só quem está muito atento é que é capaz de descobrir a fífia da orquestra, caso contrário não dá por nada.

Nuno Miguel Borges:

E a sua regra de o vinho ter de aguentar vários dias numa garrafa aberta?

Virgílio Loureiro:

Isso também foi uma coisa que fui aprendendo aos poucos.

Nuno Miguel Borges:

A evolução do vinho com o ar?

Virgílio Loureiro:

Exactamente. Isso para mim, hoje, é muito importante. Ao princípio, quando apareceram as rolhas de borracha para fazer o vácuo, eu abria uma garrafa e, como só eu é que bebo em casa, uma garrafa dá-me para quase uma semana, então a primeira coisa que eu fazia era deitar no copo, depois meter a rolha e fazer logo o vácuo. Pronto, o vinho estava sempre igual. Aos poucos, comecei a perceber que se não fizesse isso o vinho às vezes melhorava. Hoje, nunca faço isso.

Nuno Miguel Borges:

Nunca tira o ar?

Virgílio Loureiro:

Não. Só meto a rolha para não entrar nenhuma drosófila, mais nada, e vou acompanhando o vinho ao longo dos dias.

Nuno Miguel Borges:

E não piora?

Virgílio Loureiro:

Normalmente, quando são os vinhos que eu mais aprecio, na idade adulta, melhoram quase sempre.

Nuno Miguel Borges:

Mesmo com idade?

Virgílio Loureiro:

Claro, quanto mais velhos mais melhoram.

Nuno Miguel Borges:

Estamos a falar de quantos dias?

Virgílio Loureiro:

Uma semana. Eu andei com um vinho branco, que o meu amigo Paulo Coutinho, do Douro, me enviou para eu provar, durante um mês e o vinho estava sempre bom.

Nuno Miguel Borges:

Brancos e tintos?

Virgílio Loureiro:

Sim.

Nuno Miguel Borges:

Então, isto que andamos a fazer de tirar o ar ao vinho não faz muito sentido?

Virgílio Loureiro:

Quer dizer, para mim não faz, por todas as razões, mas para mim acima de tudo é para satisfazer a minha curiosidade, às vezes pode fazer mal, mas eu quero é saber se faz mal.

Nuno Miguel Borges:

E para si, se o vinho for bom, o ar não faz mal?

Virgílio Loureiro:

Não, quer dizer, eu tenho de interpretar o vinho tal qual ele é, nuns casos morre. Eu já assisti a situações dessas com vinhos muito velhos em que, quando abri a garrafa e deitei no copo, o vinho estava esquisito, abriu e morreu quase instantaneamente depois de ter tido ali um fôlego antes de morrer.

Nuno Miguel Borges:

E que lhe diz isso?

Virgílio Loureiro:

Quer dizer, foi outra experiência que eu tive, não é mais do que isso. Agora, estou mais bem preparado para as interpretar, para as sentir, e nunca digo peremptoriamente que o vinho vai evoluir assim ou vai evoluir assado. Há virtuosos que dizem isso com toda a convicção, vai durar vinte anos ou trinta anos, mas eu não, tenho de ir acompanhando.

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